terça-feira, 6 de janeiro de 2009

A CURANDEIRA - episódios sobre os camponeses da Madeira



Um episódio magnífico escrito por José Vieira, sociólogo madeirense, cooperativista e militante de muitas causas!

Subindo e descendo aquele escarpado caminho ninguém dava por ela, passava despercebida, mas lá que ela existia, existia, e que o digam as crianças que foram massajadas por aquelas sabedoras mãos.

E para que fique claro nos espíritos dos menos esclarecidos, ou gente mal intencionada, a mulher a que me referirei não era uma bruxa nem qualquer coisa que se pareça, simplesmente uma mulheraça que muito bem fez pelos boaventurenses, ao longo da sua vida.

Aquela mulher alta, em relação à média da população local, sobressaía pela sua simplicidade, pelo seu espírito recatado, mas sempre pronta e disposta a largar tudo para socorrer este ou aquela que viesse ao seu encontro. Porquanto sabiam-na conhecedora da matéria e reconheciam-lhe determinados atributos inscritos nas suas misteriosas mãos que faziam prodígios.

Trabalhava afanosamente, de sol a sol, nos terrenos que tinha para os lados da Coada, ou de S. Cristóvão. Para lá chegar era uma carga de trabalhos. Tinha de descer de degrau a degrau a crista do escarpado Pastel, sempre, sempre a descer, tornando-se mais brando quando chegava à casa do Senhor Manuel Agostinho. Ai podia descansar um pouco ou meter dois dedos de conversa com a Piedadezinha.

Porém, como não era pessoa intrometediça, as suas parcas palavras resumiam-se na saudação frequente, de um louvado seja Nosso senhor Jesus Cristo, em saber se todos estavam bem e num até logo se Deus quiser, prosseguia o passo. E lá continuava o caminho porque tinha ainda muito que andar para chegar ao seu pedacinho de terra. A todos por quem passava dirigia sempre a mesma saudação. Passada a mercearia do Senhor Caetano, prosseguia a descida até chegar ao seu quinhão. O certo é que a partir de certa altura, já com os músculos quentes, a sua desenvoltura era maior e quase não manifestava fadiga.

Dizia-se que a descer todos os santos ajudam. O pior era mesmo subir. Depois de um dia inteiro de trabalho, com a inchada em punho a lavrar a terra, a Maria da Pata, ainda antes de se vir embora tinha de ceifar um molho de erva para o gado. Fazia uma rodilha com o lenço, atava o molho com uns vimes, ponha-o à cabeça ou sobre os ombros e toca transportá-lo sempre a subir, para o palheiro, lá no alto do Pastel.

Mas atenção, com o toque das ave-marias, a mulher procurava uma parede ou um muro para descansar e concentrava-se ao chamamento religioso produzido pelo sino. Rezava e voltava a colocar o molho à cabeça e quando passava ao lado da Igreja era já noite serrada. Voltava a fazer nova paragem para tomar folgo e ganhar ânimo para a etapa mais difícil a partir da casa da Etelvina. Depois só parava chegando a casa.

O que queremos narrar neste episódio é o que por vezes acontecia que as crianças que gostavam muito de andar à rédia solta, de grandes brincadeira, que não podiam estar sentadas, nem caladas, aquelas correrias davam atreito a virar o bucho. E isso aconteceu com o Ramiro, com o Zeferino e com tantos outros garotos. Eles como todas as outras crianças que andavam sempre a mexer, a correr, a saltitar, a brincar, certo dia o rapaz deixou de ter apetite, noutra refeição não lhe apetecia, depois quase deixava de comer. Aparentava um ar de parado, e com algumas dores na barriga.

Então, a mãe lembrou-se de falar à Maria Pata para lhe dar umas massagens na barriga, até ver o resultado. A mulher que andava sempre muito ocupada com as lides de casa, com o tratamento do gado, com o fazer o comer para um montão de gente, costumava passar pela tardinha em frente da nossa casa, no regresso da labuta. Por vezes lá descansava, com o seu molho de erva às costas ou à cabeça e entabulava conversa com quem passava. Debaixo de um molho de erva quase ninguém a reconhecia. Só quando descansava um pouco em frente da casa do Senhor Manuel Carvalho é que se lhe podia ver a cara transpirada e algo aliviada do peso.

A D. Benvindinha pressentindo pela sua alta voz porque ela se encontrava por ali e vai deixa a costura, vai a correr e dirige-se à mulher que já ia a caminho, subia os primeiros degraus, ao lado do fontanário. Lá conversaram, a mãe pediu-lhe para ela vir dar umas massagens na criança que tinha o pressentimento ter o bucho voltado do avesso. Nessa mesma noite, a mulher depois da ceia veio a toda à pressa dar a massagem no menino Ramirinho.

No concreto, assisti num final do dia, quando a Maria da Pata regressava da labuta diária, às massagens do buxo do Ramiro, por solicitação da mãe que não via o rapaz melhorar. As massagens geralmente passavam-se em cima da cama, ao lado do quarto da costura, na casa da tia Josefina.

O certo é que a mulher, untava as mãos com azeite, dava umas voltas à barriga, em vários sentidos e por vezes pegava pelas costas, entre rins e pedia a alguém para aquecer umas folhas de couve às quais ponha-lhe igualmente azeite e passava uma toalha ou um pano à volta do corpo para suster bem as folhas de couve. Repetia-lhe as massagens duas três ou quatro vezes. E o rapazinho não podia se mexer muito com aquele peso todo.

Nós curiosos, os mais velhos e a Graça, e eu, José, achávamos graça à maneira como a Maria Pata dava com tanto jeito as massagens. Não sabemos onde é que ela aprendeu as técnicas, o certo é que para dar massagens, ventosas ou assistir aos partos, de quase todas as mulheres da terra, era única e especialista na matéria. Quando vinha dar as massagens trazia uma roupa melhor, nem era a do trabalho nem a do domingo. Vinha mais bem asseada e não transmitia o suor de certas ocasiões quando passava atrás da casa com o molho de mato à cabeça. As pessoas tinham o cuidado de se lavarem para parecer bem aos outros.

O ritual das massagens ocorria durante vários dias, com massagens de manhã e à tardinha ou à noite. O certo é que passados uns três a quatro dias, as crianças já andavam melhor, comiam e começavam a querer brincar. Era bom sinal, que o bucho tinha ido ao seu lugar.

A Maria da Pata também veio uma outra vez a casa dar umas ventosas na Sara que se queixava de muitas dores nas costas que se atribuía ao esforço ao lavar a roupa à mão, no tanque. Ela não cobrava nada pelos seus serviços, mas ficava muito satisfeita com um grogue que ela apreciava muito. Fui certamente a última vez que a encontrei em nossa casa.

Acontece que todos a conheciam na terra, sabiam onde trabalhava, a vida que fazia e onde morava. Quando alguém necessitava dos seus préstimos iam a correr à sua procurar, estivesse onde estivesse. Deixava tudo o que estava a fazer para acudir aos necessitados, por vezes em grandes aflições.

Fosse onde fosse, lá estava a Maria da Pata a inteirar-se dos acontecimentos. Assim, a dita mulher era solicitada para: curar o buxo às crianças que andavam todas murchas, não comiam, não brincavam, tinham perdido a alegria da vida; assistir aos partos das mulheres pranhas que iam dar à luz, que já tinham perdido as águas ou que se queixavam das primeiras dores; dar umas ventosas nas costas deste ou daquele que andava com dores na espinha ou nas costelas; endireitar músculos, braços, pés torcidos, enfim, a todos remediava.

Há que reconhece-lo, a vida para essa gente do campo, em geral, mas em particular para as pessoas do sítio do Pastel, era extremamente dolorosa. E o que me espanta era onde iam buscar forças para estarem bem dispostos depois de tanto cansaço. Sim porque os dias repetiam-se, era sempre o mesmo.

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