A crise está a acelerar a desregulação do mercado de trabalho, mas também a tornar obsoletos,
em alguns casos, os próprios mecanismos tradicionais de recrutamento e selecção.
Os candidatos a um emprego - um bem cada vez mais escasso, como comprova a taxa de
desemprego de 17,8% em Abril -, são cada vez mais destacados para um "palco" onde exibem em tempo limitado os dotes académicos e profissionais. "Estamos a caminhar para coisas que já não lembram à memória", desabafou ao Negócios o presidente do Sindicato dos Operários Corticeiros do Norte.
A partir do moderno conceito "So Pitch" - evento de "networking" que junta empresários e candidatos para uma espécie de "casting" - Alírio Martins apontou que "não é absurdo" recuar em paralelismo às antigas "praças de jorna". Antes do 25 de Abril, sobretudo no Alentejo e Ribatejo, os trabalhadores rurais sem emprego juntavam-se num mercado de mão-de-obra a céu aberto para "tomar patrão"; na sexta-feira, no Porto, 12 desempregados mostram-se durante nove horas a um grupo de empresas a quem vão clamar "Emprega-me".
"Hoje os candidatos sujeitam-se a tudo por 500 euros. É uma pobreza do ponto de vista cultural. Estamos em 2013, não em 1913. Portugal tem direito a ser muito mais civilizado", referiu Luís Rodrigues. O professor de Sociologia das Organizações da Universidade Nova de Lisboa criticou a "violência inacreditável" em processos de selecção que "tratam as pessoas como gado" e considerou "eticamente reprovável" a "moda de que toda a gente tem de ser um líder e efusivamente brilhante em cima de um palco". Uma projecção da "sociedade do espectáculo em todos os sentidos", incluindo o da contratação.
O consultor da União Europeia, Banco Mundial e Nações Unidas lamentou que "à partida, mesmo que seja para trabalhar atrás do computador, [os candidatos] tenham de se mostrar muito empreendedores e capazes de mudar este mundo e o outro", acabando por dar "um 'show', por vezes ridículo, daquilo que gostariam de ser". "A espécie que triunfa é a que dá mais espectáculo?", insistiu Rodrigues, concluindo que "os recrutamentos parecem [a telenovela juvenil] 'Morangos com Açúcar' com a sua ideologia pop'".
Excesso de qualificações também prejudica as empresas
O sociólogo denunciou, por outro lado, a "imoralidade" de empregar alguém com excesso de qualificações para uma determinada função, o que, mais tarde ou mais cedo, resultará numa "violência brutal".
Um efeito igualmente pernicioso para a própria empresa, como sustentou o líder dos operários corticeiros. "Começamos a ter funcionários com escolaridade mais elevada, mas pouca capacidade profissional e humana Fazem o que lhes é pedido, mas é difícil enraizarem-se na profissão. E com o tempo a empresa vai perdendo porque nunca vão gostar daquilo que fazem", explicou Alírio Martins.
Se no sector da cortiça são cada vez mais as empresas que externalizam a prospecção de trabalhadores, sobretudo tem horários, que antes era feita pelos departamentos internos de recursos humanos - o que a 'liberta" de alguns acordos laborais -, o sector da construção assiste à " maior desregulação de sempre em termos da contratação". A denúncia é do presidente do sindicato do sector, Albano Ribeiro, estimando que "80% dos que hoje arranjam trabalho fora do País vão sem contrato e [sujeitos a] grandes arbitrariedades".
Construção: acordos orais acertados em bombas de gasolina
O encontro com os angariadores de mão-de-obra é feito nas bombas de gasolina, as condições de trabalho são acertadas apenas oralmente e os trabalhadores portugueses entram em carrinhas rumo ao centro da Europa, sobretudo à Alemanha e Bélgica.
É isto que o Sindicato dos Trabalhadores da Construção garante estar a acontecer actualmente a 80% daqueles que arranjam trabalho em obras fora do Pais. Chegados ao destino, em muitos casos as promessas não passam disso mesmo. "Ainda hoje [sexta-feira] chegaram aqui três [operários da construção civil] que pensavam que iam ganhar 1.800 euros na Bélgica, com alimentação, alojamento e transporte incluídos. Estiveram lá dois meses, deramlhes 700 euros e ainda tiveram de pagar eles o transporte de volta", detalhou Albano Ribeiro.
Junto à estação portuense de São Bento ou no lisboeta Campo das Cebolas, ainda há quem se concentre às primeiras horas da madrugada à espera de uma oferta para "fazer uns biscates" em território nacional, mas a travagem a fundo das obras em Portugal faz com que sejam cada vez menos. A estrada da crise há vários anos que os leva a atravessar a fronteira.
"Na praça, era só homens, mas elas também iam ceifar"
Feitores negociavam, mas a palavra final era dos patrões
MANUEL ESTEVES - mesteves@negocios.pt