Um amigo com uma história de militancia católica de longa data dizia-me que queria reler todas
as encíclicas sociais, agora com novos olhos após décadas de ação.Essa conversa fez-me voltar aos meus tempos de estudante de teologia ocorridos nas gloriosas datas de 1970-74.Recordo que embora tendo actualizados e excelentes professores como Frei Bento Domingues e Luis de França a nossa geração considerava a doutrina social da Igreja como um instrumento anacrónico e pouco operacional para alimentar as nossas ideias de libertação dos oprimidos e pobres.As obras dos teólogos da libertação, de Paulo Freire e alguns líderes anti coloniais eram a nossa inspiração e liamos com entusiasmo livros de Gutierrez e Boff bem como como «Uma leitura materialista do evangelho» do filósofo Fernando Belo, ex-padre, e nunca bem entendido em Portugal e muito menos reconhecido.Após algumas décadas, já em pleno triunfo do
neo liberalismo e da queda do Muro de Berlim encontrei por acaso um militar da
Revolução de Abril, conselheiro do polémico primeiro Ministro Vasco Gonçalves,
que tira um livo do bolso, sublinhado em
algumas partes e diz -me mais ou menos por estas palavras « neste momento pá,
as encíclicas sociais são uma cartilha esquerdista para muita gente».Fiquei a
olhar para ele de boca aberta!O interessante é que também ele estava a reler
aquilo que em tempos considerou certamente de outra maneira, como textos
idealistas e agora anticapitalistas.Ou seja, os tempos mudaram, ou, segundo
alguns, andaram de marcha atrás.
A doutrina social da Igreja é fruto de um debate dos católicos
Ao contrário do que, por vezes, se pensa estes
documentos não são meramente teóricos,
fruto de uns iluminados do Vaticano ou do próprio Papa.Antes reflectem em geral
o movimeto social e de debate no seio dos católicos, nomeadamente das pessoas
mais militantes sob ponto de vista social, de teólogos e de experiências
concretas negativas e positivas ao longo de vários anos que depois estimulam o
Papa a escrever um documento que se procura abrangente e indicador de
caminhos,ou do «caminho certo».A
exortação «Querida Amazónia» do papa Francisco é um dos documentos mais
bem preparados do papado na medida em que foram escutadas muitas pessoas,
organizações e comunidades cristãs.
Na minha opinião é muito estimulante reler
algumas grandes encíclicas sociais, de grandes papas da Igreja Católica sem
deixar de as contextualizar histórica e sociológicamente.Entre as várias linhas
de interesse saliento algumas sem me alongar:
1.Os principais documentos foram produzidos em
momentos críticos da Humanidade tanto sob ponto de vista social e do trabalho,
como da guerra e da paz, do colonialismo e das lutas de libertação, como das
mudanças impostas pela globalização e do clima.Basta lembrar a famosa encíclica
«Rerum Novarum» de Leão XIII, uma tentativa da Igreja em dar um sentido ao
trabalho na nova era industrial para não perder os operários seduzidos pela
utopia socialista e pelos métodos anarquistas;uma «Pacem in Terris» de Joaõ
XXIII que procurou congregar todos os homens e mulheres de boa vontade para a
paz num contexto de confronto entre potências nucleares;uma «Populorum
Progresso» de Paulo VI que actualiza a posição da Igreja perante o colonialismo
e o desenvolvimento dos povos;uma «Laborem exercens» de Joaõ Paulo II
procurando recuperar o sentido do trabalho num quadro da crise socialista, o
fim da URSS e o triunfo do neoliberalismo; e finalmente o documento extraordinário «Laudato Si» do
Papa Francisco que coloca a necessidade da Humanidade superar a crise social e
ambiental global colocando a Igreja Católica como um actor fundamental nesta
resolução.
2.A s
duras realidades sociais da industrialização capitalista, com o seu
historial de dor e exploração, o crescimento e afirmação do movimento operário
e socialista no mundo estiveram sempre presente nos documentos sociais do
papado.Por um lado porque o movimento
operário fugia à Igreja Católica disputando-lhe a condução dos pobres e trabalhadores e
dando-lhes uma «salvação laica e, por outro, colocava em causa o poder
ancestral daquela.
Os católicos tiveram dificuldade em ler os
sinais dos tempos
Nos finais do século XIX os católicos tinham
dificuldade em ler os sinais dos tempos, as mudanças revolucionárias que se
estavam a operar.O próprio ideal liberal foi difícil de engolir e muito mais a
República e as reivindicações dos pés rapados da Comuna.Que o poder não emana
do soberano, que o partilha com Deus, mas do povo foi das maiores revoluções
culturais que ocorreram na Europa e nas Américas.Que o soberano herditário pode
ser banido e dar lugar a uma República com chefe de estado eleito, com ensino laico e separação de poderes foi outra
grande mudança.
Em França os chamados
católicos sociais tinham pouco acolhimento entre a hierarquia e as massas
camponesas e operárias,embora por diferentes motivos.As iniciativas sociais
católicas eram pouco arrojadas e de natureza caritativa.Em Portugal o melhor
que o clero apresentou para concorrer com as associações de classe dos
aguerridos socialistas e anarquistas foram os Circulos Católicos de Operários,em
1897,seis anos após a «Rerum Novarum» que nunca tiveram sucesso e não eram
verdadeiramente dirigidos por operários mas quase sempre por padres e patrões.
A encíclica «Rerum
Novarum»em 1891, veio dar um grito de alerta para a «questão social», ou seja,
a Igreja Católica não podia deixar abandonados os operários nas condições de
miséria e morte da revolução industrial,
com crianças a trabalhar 12 ,14 e mais horas,doenças do trabalho, fome,salários
de miséria.Embora de forma ainda pouco madura os movimentos de trabalhadores
estavam-se a organizar em quase toda a Europa.
Diriamos assim que
esta encíclica reflectia estas preocupações e a ncessidade de abrir um caminho
que não fosse igual ao proposto pelo movimento socialista ,em geral bastante
anticlerical e em competição com o movimento republicano que se tornaria poder
em 1910.
3. As enciclicas
papais deram origem uma corrente
política em quase todo o mundo -a democracia cristã- plataforma política para
alcançar o poder.Esta corrente conseguiu em alguns países uma melhoria das
condições de vida dos trabalhadores e até organizar sindicatos
progressistas.Todavia, na maioria dos países comprometeu-se fortemente com o
grande capital e com os sectores conservadores.
As encíclicas
papais foram ostracisadas em Portugal
Em Portugal Salazar
cedo avisou os católicos que não seria possível tal partido.O partido único -a
União Nacional- seria o partido dos católicos,ideia que no início de algum modo
agradou à maioria dos mesmos.Há historiadores que explicam a perseguição ao
D.António , Bispo do Porto, com o medo que o ditador teve de que pudesse aquele
prelado aglutinar gente para um partido democrata cristão.
Mas as encíclicas
em Portugal foram sempre ostracisadas por um clero de pobre formação e por um
episcopado comprometido com o regime.A grande roptura com o regime em Portugal
viria de um padre, inicialmente seduzido pelas promessas sociais da ditadura-o
Padre Abel Varzim e de uma Ação Católica Operária que ao meter as mãos na
mísera situação dos trabalhadores portugueses foi passando para o outro lado da
barricada, ou seja para a oposição, sem abandonar as referências
envangélicas.Foi a utilização do célebre método «Ver, Julgar e Agir» da Padre
belga Cardin que os operários católicos deram a volta á ideia de salvação, ou
seja a coversão, a mudança social ,o «mundo melhor»passa não apenas por nós
individualmente mas, sobretudo, pelas condições materiais,e mudando as
instituições.Alguns sectores do movimento católico operário português evoluiram
na reflexão e chegaram não apenas a uma oposição á ditadura e á guerra colonial
mas também ao anticapitalismo.Foi o caso dos militantes ligados ao Centro de Cultura Operária (CC0) e mais tarde
à BASE-FUT. E aqui temos matéria para outro artigo.