terça-feira, 25 de agosto de 2020

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA: uma cartilha esquerdista?

 

Um amigo com uma história de militancia católica de longa data dizia-me que queria reler todas

as encíclicas sociais, agora com novos olhos após décadas de ação.Essa conversa fez-me voltar aos meus tempos de estudante de teologia ocorridos nas gloriosas datas de 1970-74.Recordo que embora tendo actualizados e excelentes professores como Frei Bento Domingues e Luis de França a nossa geração considerava a doutrina social da Igreja como um instrumento anacrónico e pouco operacional para alimentar as nossas ideias de libertação dos oprimidos  e pobres.As obras dos teólogos da libertação, de Paulo Freire e alguns líderes anti coloniais eram a nossa inspiração e liamos com entusiasmo livros de Gutierrez e Boff bem como como «Uma leitura materialista do evangelho» do filósofo Fernando Belo, ex-padre, e nunca bem entendido em Portugal e muito menos reconhecido.

Após algumas décadas, já em pleno triunfo do neo liberalismo e da queda do Muro de Berlim encontrei por acaso um militar da Revolução de Abril, conselheiro do polémico primeiro Ministro Vasco Gonçalves, que  tira um livo do bolso, sublinhado em algumas partes e diz -me mais ou menos por estas palavras « neste momento pá, as encíclicas sociais são uma cartilha esquerdista para muita gente».Fiquei a olhar para ele de boca aberta!O interessante é que também ele estava a reler aquilo que em tempos considerou certamente de outra maneira, como textos idealistas e agora anticapitalistas.Ou seja, os tempos mudaram, ou, segundo alguns, andaram de marcha atrás.

A doutrina social  da Igreja é fruto de um debate dos católicos

Ao contrário do que, por vezes, se pensa estes documentos  não são meramente teóricos, fruto de uns iluminados do Vaticano ou do próprio Papa.Antes reflectem em geral o movimeto social e de debate no seio dos católicos, nomeadamente das pessoas mais militantes sob ponto de vista social, de teólogos e de experiências concretas negativas e positivas ao longo de vários anos que depois estimulam o Papa a escrever um documento que se procura abrangente e indicador de caminhos,ou do «caminho certo».A  exortação «Querida Amazónia» do papa Francisco é um dos documentos mais bem preparados do papado na medida em que foram escutadas muitas pessoas, organizações e comunidades cristãs.

Na minha opinião é muito estimulante reler algumas grandes encíclicas sociais, de grandes papas da Igreja Católica sem deixar de as contextualizar histórica e sociológicamente.Entre as várias linhas de interesse saliento algumas sem me alongar:

1.Os principais documentos foram produzidos em momentos críticos da Humanidade tanto sob ponto de vista social e do trabalho, como da guerra e da paz, do colonialismo e das lutas de libertação, como das mudanças impostas pela globalização e do clima.Basta lembrar a famosa encíclica «Rerum Novarum» de Leão XIII, uma tentativa da Igreja em dar um sentido ao trabalho na nova era industrial para não perder os operários seduzidos pela utopia socialista e pelos métodos anarquistas;uma «Pacem in Terris» de Joaõ XXIII que procurou congregar todos os homens e mulheres de boa vontade para a paz num contexto de confronto entre potências nucleares;uma «Populorum Progresso» de Paulo VI que actualiza a posição da Igreja perante o colonialismo e o desenvolvimento dos povos;uma «Laborem exercens» de Joaõ Paulo II procurando recuperar o sentido do trabalho num quadro da crise socialista, o fim da URSS e o triunfo do neoliberalismo; e finalmente  o documento extraordinário «Laudato Si» do Papa Francisco que coloca a necessidade da Humanidade superar a crise social e ambiental global colocando a Igreja Católica como um actor fundamental nesta resolução.

2.A s  duras realidades sociais da industrialização capitalista, com o seu historial de dor e exploração, o crescimento e afirmação do movimento operário e socialista no mundo estiveram sempre presente nos documentos sociais do papado.Por um lado porque  o movimento operário fugia à Igreja Católica disputando-lhe a  condução dos pobres e trabalhadores e dando-lhes uma «salvação laica e, por outro, colocava em causa o poder ancestral daquela.

Os católicos tiveram dificuldade em ler os sinais dos tempos

Nos finais do século XIX os católicos tinham dificuldade em ler os sinais dos tempos, as mudanças revolucionárias que se estavam a operar.O próprio ideal liberal foi difícil de engolir e muito mais a República e as reivindicações dos pés rapados da Comuna.Que o poder não emana do soberano, que o partilha com Deus, mas do povo foi das maiores revoluções culturais que ocorreram na Europa e nas Américas.Que o soberano herditário pode ser banido e dar lugar a uma República com chefe de estado eleito, com  ensino laico e separação de poderes foi outra grande mudança.

Em França os chamados católicos sociais tinham pouco acolhimento entre a hierarquia e as massas camponesas e operárias,embora por diferentes motivos.As iniciativas sociais católicas eram pouco arrojadas e de natureza caritativa.Em Portugal o melhor que o clero apresentou para concorrer com as associações de classe dos aguerridos socialistas e anarquistas foram os Circulos Católicos de Operários,em 1897,seis anos após a «Rerum Novarum» que nunca tiveram sucesso e não eram verdadeiramente dirigidos por operários mas quase sempre por padres e patrões.

A encíclica «Rerum Novarum»em 1891, veio dar um grito de alerta para a «questão social», ou seja, a Igreja Católica não podia deixar abandonados os operários nas condições de miséria e morte  da revolução industrial, com crianças a trabalhar 12 ,14 e mais horas,doenças do trabalho, fome,salários de miséria.Embora de forma ainda pouco madura os movimentos de trabalhadores estavam-se a organizar em quase toda a Europa.

Diriamos assim que esta encíclica reflectia estas preocupações e a ncessidade de abrir um caminho que não fosse igual ao proposto pelo movimento socialista ,em geral bastante anticlerical e em competição com o movimento republicano que se tornaria poder em 1910.

3. As enciclicas papais deram origem  uma corrente política em quase todo o mundo -a democracia cristã- plataforma política para alcançar o poder.Esta corrente conseguiu em alguns países uma melhoria das condições de vida dos trabalhadores e até organizar sindicatos progressistas.Todavia, na maioria dos países comprometeu-se fortemente com o grande capital e com os sectores conservadores.

As encíclicas papais foram ostracisadas em Portugal

Em Portugal Salazar cedo avisou os católicos que não seria possível tal partido.O partido único -a União Nacional- seria o partido dos católicos,ideia que no início de algum modo agradou à maioria dos mesmos.Há historiadores que explicam a perseguição ao D.António , Bispo do Porto, com o medo que o ditador teve de que pudesse aquele prelado aglutinar gente para um partido democrata cristão.

Mas as encíclicas em Portugal foram sempre ostracisadas por um clero de pobre formação e por um episcopado comprometido com o regime.A grande roptura com o regime em Portugal viria de um padre, inicialmente seduzido pelas promessas sociais da ditadura-o Padre Abel Varzim e de uma Ação Católica Operária que ao meter as mãos na mísera situação dos trabalhadores portugueses foi passando para o outro lado da barricada, ou seja para a oposição, sem abandonar as referências envangélicas.Foi a utilização do célebre método «Ver, Julgar e Agir» da Padre belga Cardin que os operários católicos deram a volta á ideia de salvação, ou seja a coversão, a mudança social ,o «mundo melhor»passa não apenas por nós individualmente mas, sobretudo, pelas condições materiais,e mudando as instituições.Alguns sectores do movimento católico operário português evoluiram na reflexão e chegaram não apenas a uma oposição á ditadura e á guerra colonial mas também ao anticapitalismo.Foi o caso dos militantes ligados ao  Centro de Cultura Operária (CC0) e mais tarde à BASE-FUT. E aqui temos matéria para outro artigo.

 

 

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