sexta-feira, 14 de novembro de 2008

DE QUEM É A CULPA?


Artigo de Anselm Japp* sobre a crise do sistema capitalista:

Desta vez, todos os comentadores estão de acordo: o que se está a passar não é uma mera turbulência passageira dos mercados financeiros. Estamos a viver, sem dúvida, uma crise que é considerada a pior desde a Segunda Guerra Mundial, ou desde 1929. Mas de quem é a culpa, e por onde encontrar a saída? A resposta é quase sempre a mesma: a «economia real» está sã, foram os mecanismos corruptos de uma finança que escapou a todo e qualquer controlo que puseram em risco a economia mundial. Sendo assim, a explicação mais expedita, mas também mais propagada, atribui toda a responsabilidade pela crise à «avidez» de um punhado de especuladores que teriam jogado com o dinheiro de todos como se estivessem num casino. Mas reduzir os arcanos da economia capitalista, quando esta funciona mal, às maquinações de uma conspiração maléfica tem uma longa e perigosa tradição. Arranjar, mais uma vez, bodes expiatórios – a «alta finança judaica» ou outra –, oferecendo-os ao julgamento do «povo honesto», constituído pelos trabalhadores e aforradores, seria a pior das saídas possíveis.
Opor um «mau» capitalismo «anglo-saxónico», predador e sem delimitações, a um «bom» capitalismo «continental», mais responsável, não é uma atitude muito mais séria. Verificou-se, nas últimas semanas, que as diferenças são subtis. Todos aqueles que agora apelam a uma «maior regulação» dos mercados financeiros, desde a associação ATTAC ao Presidente Sarkozy, não vêem nas loucuras das bolsas mais do que um «excesso», um abcesso num corpo são.
E se a financiarização, longe de ter arruinado a economia real, a tivesse, pelo contrário, ajudado a sobreviver para além da data de prescrição? Se tivesse insuflado um sopro de vida num corpo moribundo? Por que estamos tão certos de que o próprio capitalismo deva escapar ao ciclo do nascimento, crescimento e morte? Não poderá ele conter limites intrínsecos ao seu desenvolvimento, limites que não residem apenas na existência de um inimigo declarado (o proletariado, os povos oprimidos), nem na extinção dos recursos naturais?

Nos dias que correm, voltou a ser moda citar Karl Marx. Mas este filósofo alemão não falou apenas da luta de classes. Ele previu também que um dia a máquina capitalista se deterá por si própria, que a sua dinâmica se exaurirá. Porquê? O modo de produção capitalista de mercadorias contém, à partida, uma contradição interna, uma autêntica bomba ao retardador situada nos próprios fundamentos. Só é possível fazer frutificar o capital e, por conseguinte, acumulá-lo, explorando a força de trabalho. Mas, para gerar lucro ao empregador, o trabalhador tem de estar apetrechado com as ferramentas necessárias, e hoje com tecnologias de ponta. Daí resulta uma corrida contínua – ditada pela concorrência – à utilização de tecnologias. O primeiro empregador a recorrer a novas tecnologias fica sempre a ganhar, porque os seus operários produzem mais do que os que não dispõem dessa ferramenta. Mas o sistema no seu todo perde, porque as tecnologias substituem o trabalho humano. O valor de cada mercadoria singular contém, pois, uma quota-parte cada vez mais exígua de trabalho humano – que é, no entanto, a única fonte da mais-valia e, portanto, do lucro. O desenvolvimento da tecnologia diminui os lucros na sua totalidade. Contudo, durante um século e meio, o alargamento da produção de mercadorias, à escala mundial, foi capaz de compensar esta tendência para a diminuição do valor de cada mercadoria.

Desde os anos 70 do século passado, este mecanismo – que outra coisa não era senão uma fuga para a frente – está bloqueado. Paradoxalmente, os ganhos de produtividade permitidos pela microelectrónica fizeram o capitalismo entrar em crise. Eram necessários investimentos cada vez mais vultosos para pôr a trabalhar os poucos operários que tinham sobrado segundo os padrões de produtividade do mercado mundial. A acumulação real do capital ameaçava estancar. É então que o «capital fictício», como lhe chamou Marx, ganha livre curso.


O abandono da convertibilidade do dólar em ouro, em 1971, retirou a última válvula de segurança, o último ancoradouro à acumulação real. O crédito mais não é do que uma antecipação dos lucros futuros esperados. Mas quando a produção de valor, logo de sobrevalia, estagna na economia real (o que não tem nada que ver com uma estagnação da produção de coisas – mas o capitalismo gira à volta da produção de mais-valia, e não de produtos, enquanto valores de utilização), só a finança permite aos proprietários de capital realizarem os lucros que se tornaram impossíveis de obter na economia real. A escalada do neoliberalismo, a partir de 1980, não foi uma manobra suja dos capitalistas mais ávidos, um golpe de Estado preparado com a ajuda de políticos complacentes, como quer crer a esquerda «radical» (que agora tem de tomar uma decisão: ou avança para uma crítica do capitalismo, sem mais, mesmo que este já não se proclame neoliberal, ou participa na gestão de um capitalismo emergente que incorporou uma parte das críticas feitas aos seus «excessos»). Pelo contrário, o neoliberalismo foi a única forma possível de prolongar um pouco mais o sistema capitalista, cujos fundamentos ninguém, seriamente, queria pôr em causa, quer à direita, quer à esquerda. Graças ao crédito, um grande número de empresas e de indivíduos conseguiu manter durante muito tempo uma ilusão de prosperidade.

Agora, também esta muleta se quebrou. Mas o regresso ao keynesianismo, evocado a torto e a direito, será de todo impossível: os Estados já não dispõem de suficiente dinheiro «real». Por agora, os decisores adiaram um pouco mais o mane-tecel-phares, acrescentando um outro zero aos números mirabolantes escritos nos ecrãs e aos quais já não corresponde nada. Os empréstimos concedidos recentemente para salvar as bolsas são dez vezes superiores aos buracos que faziam tremer os mercados há dez anos – mas a produção real (diga-se, banalmente, o PIB) aumentou cerca de 20 a 30 por cento! O «crescimento económico» já não tinha base autónoma: resultava, sim, das bolhas financeiras. Mas quando estas bolhas tiverem rebentado, não haverá um «saneamento» após o qual tudo possa recomeçar.

Talvez não venhamos a assistir a uma «sexta-feira negra», como em 1929, a um «Dia do Juízo». Mas há boas razões para crer que estamos a viver o fim de uma longa época histórica. A época em que a actividade produtiva e os produtos não servem para satisfazer necessidades, mas para alimentar o ciclo incessante do trabalho que valoriza o capital e do capital que emprega o trabalho. A mercadoria e o trabalho, o dinheiro e a regulação estatal, a concorrência e o mercado: por trás das crises financeiras que há vinte anos se repetem, cada vez mais graves, perfila-se a crise de todas estas categorias. As quais, é sempre bom lembrá-lo, não fazem parte da existência humana em toda a parte e sempre. Apoderaram-se da existência humana ao longo dos últimos séculos e poderão evoluir para algo diferente – algo melhor ou ainda pior. Contudo, não é o tipo de decisão que se tome numa reunião do G8…

[Tradução do francês de Maria da Graça Macedo]


*Anselm Jappe é autor de As Aventuras da Mercadoria (Antígona, 2006) e Guy Debord (Antígona, 2008).
Artigo enviado por Jorge Santana-Sines

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