sexta-feira, 11 de julho de 2008

TRABALHAR MAIS, PARA GANHAR O QUÊ?


Robert Castel
(Texto excelente que me foi enviado pelo Claudio Teixeira,Prof. Jubilado do ISCTE)



Desde há uma dezena de anos que se tem estado a produzir uma transformação considerável e inesperada na representação da função e na importância do trabalho na sociedade francesa. Em meados dos anos 1990 floresciam os discursos sobre o trabalho "valor em via de desaparecimento", ou mesmo sobre o "fim do trabalho". Traduziam a opinião - errada mas na moda - que o trabalho perdia a sua importância como pedestal privilegiado da inserção dos indivíduos na sociedade.

Paralelamente, o debate público era animado por reflexões mais sérias sobre a possibilidade de lutar contra o desemprego reduzindo a duração do trabalho a fim de melhor reparti-lo. Reflexões mais sérias porque o pleno emprego não se mede pela duração do trabalho, nem a sua produtividade pelo tempo passado a trabalhar. Não é por conseguinte insensato pensar que, no âmbito de uma melhor organização do trabalho, tendo em conta os ganhos de produtividade e os progressos tecnológicos, se poderia trabalhar menos trabalhando melhor, como o atesta a história do capitalismo industrial.

Qualquer que seja a sua pertinência, estes debates desapareceram completamente da cena pública. Assiste-se, pelo contrário, a uma extraordinária sobrevalorização do trabalho feita através de uma ideologia liberal agressiva que encontra a sua tradução política directa nas orientações da actual maioria, com o presidente da República à cabeça. A virulência da crítica às leis ditas "Aubry" sobre a redução do tempo de trabalho após a mudança de maioria em 2002 roçou, por vezes, a histeria. "A França não deve ser um parque de divertimentos" declarava durante o verão de 2003 Jean-Pierre Raffarin, então primeiro ministro. A França tornou-se a lanterna vermelha da Europa, ela atola-se no declínio porque os Franceses não trabalham bastante: a campanha presidencial foi dominada por esta apologia do trabalho e a habilidade com a qual Nicolas Sarkozy a orquestrou foi, para muitos, a razão do seu sucesso.

Todos se lembram dos slogans que incitam ao trabalho e que trazem consigo a promessa que trabalhar mais é, ao mesmo tempo, o meio para melhorar o seu poder de compra e também o meio para realizar o seu dever de cidadão e ajudar a França a reencontrar o lugar que merece no concerto das nações. Isto, evidentemente, para todos os que querem bem trabalhar, que têm a coragem para tal. Esta celebração do trabalho com efeito é acompanhada da estigmatização de todos os que não trabalham. É a suspeita que pesa sobre os desempregados de serem "desempregados por vontade própria" sobre os quais se vai multiplicar os controlos e as pressões para que aceitem todo e qualquer emprego. É também a condenação dos "assistidos", como os beneficiários do RMI, acusados de serem parasitas que vivem às custas da França que se levanta cedo.

Estas posições, de resto populares, poderiam parecer se não aberrantes, pelo menos paradoxais, dado que uma das características da situação actual está precisamente no facto de que o trabalho falta e que o pleno emprego já não se assegura mais, desde há trinta anos. Contudo, é neste contexto que o estímulo incondicional ao trabalho assume todo o seu verdadeiro sentido.

É necessário com efeito pensar em conjunto as três componente da situação presente: primeiramente, há o não-emprego, isto é uma escassez de postos de trabalho disponíveis no mercado de trabalho susceptíveis de assegurar o pleno-emprego; em segundo lugar, há uma sobrevalorização do trabalho de que resulta, com efeito, um imperativo categórico, uma exigência absoluta de trabalhar para ser socialmente respeitável; por último, existe a estigmatização do não-trabalho assimilado à ociosidade culpada, à figura tradicional do "mau pobre" vivendo à custa dos que trabalham.

Estas três dimensões funcionam complementarmente para impulsionar uma política que pode conduzir à actividade plena sem que isso signifique o regresso ao pleno emprego Todos devem e poderiam trabalhar baixando o limiar de exigência que comanda o acesso ao trabalho. É necessário por conseguinte trabalhar ainda que o trabalho não assegure as condições mínimas de uma certa independência económica. É assim que o cidadão se transforma em "trabalhador pobre", figura que está em vias de ganhar raízes na nossa paisagem social. De modo nenhum é conveniente ou gratificante ser um "trabalhador pobre", qualquer que seja o ponto de vista. Contudo é melhor que ser um "mau pobre", um miserável parasita assistido.

Desenha-se assim uma estratégia que, no limite, poderia reabsorver o desemprego ganhando progressivamente terreno através da multiplicação de formas degradadas de trabalhar. Poder-se-ia assim restaurar uma sociedade de actividade plena (palavra de ordem da OCDE) sem que se possa falar de sociedade de pleno emprego, se se entende- por emprego um trabalho relativamente seguro da sua duração (superioridade do CDI), firmemente enquadrado pelo direito do trabalho e coberto pela protecção social. O processo está em curso. De contratos ajudados em serviços pontuais à pessoa passando pela aumento rápido das formas ditas "atípicas" de empregos que representam hoje mais de 70% das contratações, põe-se em prática uma larga gama de actividades que institucionalizam a precariedade como um regime de cruzeiro no mundo do trabalho. A insegurança social está de regresso e um número crescente de trabalhadores vive de novo "diariamente a jornada", como se dizia antigamente.

Capitalismo não garante o pleno emprego

O novo regime do capitalismo que se instala desde há trinta anos após a saída do capitalismo industrial não está em condições de assegurar o pleno-emprego. A prova: a existência de um desemprego de massa e a precarização das relações de trabalho. Mas não é isto que ele visa, e os que o realizam atiram-se pelo contrário ao estatuto do emprego denunciando os custos que este representa e os obstáculos que põe ao livre desenvolvimento da concorrência a nível do planeta.

Em contrapartida, este capitalismo pretende alcançar a actividade plena para maximizar a produção das riquezas, que continua a depender do trabalho. A China oferece neste momento o exemplo de um fantástico desenvolvimento económico em grande parte devido ao facto do custo do trabalho aí ser muito baixo, porque as garantias ligadas ao emprego estão raramente associadas às actividades que se exercem livremente.

Não estamos na China, mas a França está empenhada numa dinâmica de subida de importância em diferentes tipos de actividades, aquém do pleno emprego. Estas formas de sub emprego são geralmente pouco atractivas e elas não asseguram as condições de base necessárias para ter uma vida decente. Concebe-se por conseguinte que pressões se devem exercer para fazer aceitar estas formas de trabalho: é necessário absolutamente que trabalhes para escapar ao desprezo que está ligado ao mau pobre. É finalmente tanto sobre uma chantagem de ordem moral como sobre um raciocínio económico que assenta a orquestração actual da incondicionalidade do valor trabalho pelas autoridades que nos governam.

É necessário continuar a defender o valor trabalho, porque ainda não se encontrou alternativa consistente ao trabalho para assegurar a independência económica e o reconhecimento social numa sociedade moderna. Mas também é necessário lembrar que há trabalho e trabalho. O trabalho é essencial como apoio da identidade da pessoa através dos recursos económicos e dos direitos sociais a que dá acesso. Pelo contrário, a instituição de formas degradadas de emprego em nome da exigência de trabalhar custe o que custar e a ganhar seja o que for, tem conduzido também à degradação do estatuto de trabalhador e, finalmente, à degradação da qualidade de cidadão. Não basta "reabilitar o trabalho" , como se propõe fazê-lo o presidente da República: seria necessário respeitar a dignidade dos trabalhadores.

Texto Original: Robert Castel, Travailler plus, pour gagner quoi? Le Monde, 9 de Julho de 2008.

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