quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

TUTTI FRATELLI E A PROPRIEDADE CAPITALISTA

 

O Papa Francisco é uma das pessoas mais bem informadas do mundo.Não apenas pela rede


formal da Igreja Católica, presente em quase todos os países,mas também por uma rede informal de consultores,líderes religiosos, militantes sociais e políticos.A sua experiencia pastoral também é assinalável como padre e depois como Bispo em Buenos Aires, sempre em contacto com movimentos e pessoas de todas as classes, em particular das gentes das periferias das grandes cidades.

A encíclica «Tutti Fratelli» espelha esta realidade de Francisco, de um homem com uma vasta informação e experiência pastoral.É um texto não dogmático, simples, de conversa sobre os grandes problemas do mundo.Para além de reafirmar algumas posições tradicionais da Igreja sob ponto de vista social Francisco inova na forma como as reflete perante a situação do mundo de hoje.Como sei que nem toda a gente tem paciência para ler todo o texto permitam-me abordar uma questão ou outra.

O uso comum dos bens da terra

Temos o exemplo da reflexão que Francisco faz sobre a propriedade e da sua função social que os liberais, e mesmo os sociais democratas, nunca referem preferindo manter o dogma da supremacia do direito de propriedade sobre os outros direitos sociais e fundamentais como o da necessária partilha dos bens da terra. No nº 119 diz«Isto levou a pensar que,se alguém não tem o necessário para viver com dignidade, é porque outrem se está a apropriar do que lhe é devido.S. João Crisóstomo resume isso dizendo que «não fazer os pobres participar dos próprios bens é roubar e tirar-lhes a vida;não são nossos, mas deles,os bens que aferrolhamos».

E São Gregório Magno di-lo assim: « quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não oferecemos o que é nosso;limitamo-nos a restituir o que lhes pertence»E ,nesta linha, diz Francisco «lembro que a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada».

 E acrescenta  já no nº120 «o principio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro principio de toda a ordem ético-social, é um direito natural primordial e prioritário.Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, quaisquer que eles sejam, incluindo o da propriedade privada, não devem-como afirmava Paulo VI impedir,mas pelo contrário, facilitar a sua realização.

O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do principio do destino universal dos bens criados , e isto, acrescenta Francisco, tem consequencias muito concretas que se devem reflectir no funcionamento da sociedade.Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevancia prática».

No capitalismo a propriedade privada tornou-se intocável

Francisco está a dizer que o« rei vai nu».Efectivamente as nossas sociedades ditas democráticas, nomeadamente na União Europeia, falam no chamado modelo de economia social, ou seja, uma economia que teria como objectivo criar bens essenciais para que todos  pudessem partilhar e não apenas uma minoria privilegiada.É verdade que em comparação a outros continentes a Europa construiu um modelo menos excluente sob ponto de vista social e económico.Todavia, a ideologia neo liberal apoderou-se das instituições  e temos um capitalismo europeu com poucas diferenças relativamente ao de outros continentes.Mais, temos uma gama de multinacionais, em especial as das tecnologias, que criam imensa riqueza e não querem pagar impostos ,ou seja, não querem partilhar um pouco do que roubaram!Para esses senhores a propriedade privada é intocável.

Há muita desigualdade entre países europeus e entre as classes e camadas sociais. A pobreza cresce e os imigrantes não são acolhidos devidamente.Essa ideologia excluente e capitalista também é partilhada por muita gente do povo simples.Criticam os apoios sociais e o rendimento de inserção social;criticam os desempregados porque não conseguem emprego ou porque já estão derrotados para o fazer; desprezam o trabalhador pobre e regateiam um aumento de trinta euros no salário mínimo!

Esta perspectiva de pensar que estamos todos ao mesmo nível, com a mesma saúde, a mesma cultura e as mesmas armas é profundamente capitalista e não solidária.Sómos todos diferentes, temos capacidades diferentes e já nascemos em berços diferentes.

E Francisco  no nº 124 lembra-nos o que afirmaram os bispos dos Estados Unidos da América na sua Conferência em 2018:«há direitos fundamentais que precedem qualquer sociedade, porque derivam da dignidade concedida a cada pessoa enquanto criada por Deus».É óbvio que tal afirmação apenas compromete quem é crente.Todavia, há por aí quem se ajoelhe nas igrejas em campanha eleitoral e ao mesmo tempo não quer reconhecer essa dignidade  aos ciganos,pobres e maltratados.

1 comentário:

José Ricardo disse...

De facto há por aí muitos crentes a bater com a mão no peito que não leem o verso completo, ao contrário do papa Francisco: "Vemos ouvimos e lemos. Não podemos ignorar!"