quinta-feira, 12 de março de 2009

QUEM SOMOS QUANDO PARAMOS?


Artigo de Sandra Monteiro no Le Monde Diplomatique:

O desemprego em larga escala, com todos os problemas sociais e dramas individuais que origina, é o problema central com que hoje as sociedades se confrontam. Esta realidade é hoje muito visível em países como Portugal, onde vigora desde há muito um modelo assente em baixos salários e onde as protecções sociais, além de serem fracas, não abrangem grande parte dos trabalhadores precários.

Sendo os baixos níveis de rendimentos tendencialmente causadores de endividamento e não de poupança, para grande parte da população a experiência do desemprego, essa desocupação não desejada e potencialmente prolongada, depressa se torna sinónimo de acentuada perda de poder de compra, de incapacidade de fazer face a despesas e compromissos assumidos, de desestruturação de vínculos sociais e familiares, de desistência de sonhos e projectos e de degradação da saúde física e psicológica, quando não de fome, de doença, de pobreza e de exclusão.

Do outro lado desta equação, deste disfuncionamento programado e desumano, estão os trabalhadores que se encontram empregados, mesmo que sobre eles paire a ameaça do desemprego. A estes está reservado um aumento da exploração, que se traduz, entre outros aspectos, nos níveis salariais, no tempo de trabalho e no perfil do próprio trabalho.
Daí a importância da defesa do pleno emprego e, em simultâneo, do emprego com direitos. O desemprego em massa e o emprego sobreexplorado são, com efeito, dois lados de um mesmo sistema que desvaloriza o trabalho, que trata a mão-de-obra como trata tudo aquilo que transformou em mercadoria, da máquina que se usa enquanto não avaria e se deita fora, até aos recursos naturais que são desbaratados sem qualquer noção de sustentabilidade ambiental.

O tempo da globalização neoliberal é intensivo e imediatista, compõe-se de ciclos curtos em que se procura extrair o máximo rendimento e consome, nesse processo autofágico, recursos, produtos e pessoas descartáveis. Procura criar seres humanos adaptados às necessidades do ciclo de produção, não às necessidades do ciclo de vida de cada um. Algures entre a ocupação absoluta e a desocupação absoluta é elidido o tempo de descanso regular que devia contrapor-se ao tempo do trabalho e torná-lo possível; é suprimido o corte com o universo do trabalho, anulando um distanciamento que favoreceria que o trabalho fosse encarado como fonte de desenvolvimento pessoal; é abolida a oportunidade de se parar em boas condições, reflectindo criticamente sobre si mesmo e sobre a sociedade e usando essa reflexão para a transformação pessoal e social.
«O que acontece quando alguém decide parar?», pergunta Tiago Rodrigues, autor do texto que deu origem à peça de teatro A Mulher que Parou, encenada por Cláudia Gaiolas e Pedro Carraça, e interpretada pelo grupo de teatro «Nu Kre Bai Na Bu Onda» (em crioulo, «Nós queremos ir na tua onda»), composto por jovens do bairro da Cova da Moura (Amadora). A peça, recentemente apresentada no espaço da associação cultural alkantara, que produziu o projecto, resulta de um trabalho que desde 2006 junta vários parceiros, entre os quais a Associação Cultural Moinho da Juventude, e que tem como objectivo a requalificação social e urbana daquele bairro da Amadora, através do desenvolvimento de competências em várias áreas, como o desporto, a música, a dança e o teatro.

Os actores não são profissionais; são jovens que depois dos estudos, do trabalho ou de outras actividades em que estão envolvidos na sua comunidade, ocupam o teatro como espaço de liberdade e de criatividade e constroem a sua própria relação com as suas experiências, sonhos e interrogações. É certo que a peça faz um retrato de uma comunidade num tempo e num espaço específicos, mas usa essa paisagem social para reflectir sobre questões universais.

Em A Mulher que Parou há uma mulher, Marta, que um dia decidiu parar. Simplesmente isso: sentar-se, não fazer nada. Não trabalhar no café, não fazer atletismo com as amigas, não ajudar financeiramente o irmão, não dormir com o marido, não fazer o jantar ou alimentar-se… nem sequer explicar por que motivo parou. Não porque não queira, mas porque não sabe. Não o fez por impulso irreflectido, nem por doença, nem por egoísmo, nem por preguiça: afirma, aliás, que é a coisa mais difícil que já fez. A questão do ser, da radicalidade da decisão tomada, permanecerá como um mistério até ao fim. O que motivou Marta e o que pôde observar (de si, dos outros) estando parada, só a ela pertence.

Como nota o autor do texto, «esta peça é mais sobre uma comunidade do que sobre Marta», tal «como as tragédias gregas que estavam mais preocupadas com os benefícios e malefícios para a cidade do que com o destino dos seus heróis». Entre o estatuto do herói e do marginal, formas tradicionais de recusa do compromisso com a sociedade, há uma «linha ténue» que permite «compreender a forma como vivemos», afirma Tiago Rodrigues.
Caminhando sobre essa «linha ténue», a comunidade reage sem surpresa: começa por tentar demover Marta dizendo-lhe que ela precisa de manter o emprego, as actividades e as relações com os outros; em seguida, insiste no quanto a comunidade precisa dela; e depois, como não tem êxito, recupera o seu normal funcionamento, redistribui papéis e segue em frente, como fazem todos os formigueiros que também somos. Mesmo que um dia alguém mais decida parar.
Esta peça deixa muitas perguntas: Marta desistiu de lutar ou só nesse momento começou a lutar?; deixou de ser quem era ou tornou-se mais ela mesma?… Como diz uma das personagens, ela é como muita gente do bairro que não faz nada, mas no caso dela é pior – porque não finge. Quem somos quando fazemos alguma coisa? Quem somos quando paramos? O problema do sentido permanece intacto, fazendo irromper a interrogação «porquê?» por cima do «como?» com que tendemos a organizar a vida de todos os dias.

Na verdade, se nos deixarmos interpelar pela questão do sentido, descobrimos que somos todos deste bairro. Na perspectiva mais favorável, estaremos também inseridos numa comunidade. Teremos vínculos sociais, profissionais e familiares, redes afectivas e espaços de sociabilidade. Seremos capazes de distinguir e de apreciar o tempo que dedicamos ao trabalho, ao lazer… e a não fazer nada. Talvez assim possamos tentar saber quem somos quando trabalhamos, e quem somos quando paramos. Pode ser a coisa mais difícil que já tentámos fazer, é certo. Mas o resultado pode ser uma sociedade mais humana.
quinta-feira 5 de Março de 2009

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